SITUAÇÃO ATUAL
Durante muito tempo, foi negada pelo próprio órgão indigenista, primeiramente o SPI e depois a Funai, a possibilidade de se identificarem como Kinikinau, pois eram obrigados pelos chefes de posto a se registrarem como Terena. Em 1997, a Prefeitura de Porto Murtinho, através da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes, iniciou um trabalho de Educação Escolar na Reserva Indígena Kadiwéu com a perspectiva da implantação de escolas que atendessem às necessidades de cada aldeia: Bodoquena, Barro Preto, Campina, São João e Tomázia.
Na aldeia São João, entre 1997 e 99 foram realizadas reuniões e debates sobre a escola que os índios desejavam, verificando-se que a maioria rejeitava um tratamento igual àquele oferecido aos Kadiwéu. Isso levou a se pensar, então, em uma escola que atendesse a índios Terena, o que também foi rejeitado pelo grupo. Evidente que esse fato causou muita estranheza e, ainda que timidamente, os Kinikinau começaram a expressar a partir desse episódio uma identidade étnica distinta.
Durante as reuniões verificou-se que se identificar como Terena representou, durante muito tempo, uma das estratégias utilizadas pelo grupo Kinikinau para sobreviver a toda sorte de perseguições a que foi submetido. Segundo o professor Inácio Roberto Kinikinau, eles lutam até hoje para provar que existem e que têm direito à terra, educação e identidade:Assim como outros índios, nós também estamos alcançando o direito de dar aulas para nosso povo. Eu espero que o estudo signifique a valorização cultural e mais respeito para os Kinikinaus. Por isso, deixo uma mensagem para outros índios que também estão em sala de aula: é preciso persistência, muita luta e quando ficar muito, muito difícil continuar, pense nos seus filhos, nos seus netos e no seu povo! Nas nossas palavras, hinga ûti koinukunoen hainiye ûti xo mêun (Revista Nova Escola, 2004).
Três Kinikinau fizeram parte do Curso de Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau oferecido pela Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer de Porto Murtinho, entre os anos de 2002 e 2004. Dois deles concluíram com êxito o referido curso: Inácio Roberto e Rosaldo de Albuquerque Souza.
Em 2003, o professor Inácio Roberto participou de pelo menos dois eventos de repercussão nacional em que manifestou a existência de seu grupo: I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial (Olinda/ PE, 15 a 19/05/2003) e Seminário dos Povos Resistentes: A presença indígena em MS (Corumbá/MS, 10 a 12/12/2003). Nesses encontros, o professor indígena e ex-policial militar falou sobre a difícil luta que os Kinikinau têm travado para serem conhecidos e oficialmente reconhecidos pelo Estado brasileiro. Há poucos estudos lingüísticos e de caráter histórico e antropológico, destacando-se os trabalhos de Doutorado em curso de Ilda de Souza (Lingüística) e de Iara Quelho de Castro (Ciências Sociais), ambos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Os Kinikinau reconstruíram suas vidas longe das terras tradicionalmente ocupadas pelo grupo. Entretanto, sem território físico próprio, com a língua em processo de revitalização e distantes de maior interesse acadêmico, esses índios só puderam se apoiar na Educação Escolar para atingir seus objetivos de visibilidade e aceitação. Acreditam que somente uma escola que esteja a serviço do próprio grupo poderá se constituir como um dos caminhos para a consecução desses objetivos.
Assim, o Curso de Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau constituiu-se um verdadeiro espaço de fronteiras simbólicas e/ ou identitárias. Seja nas aulas de Antropologia Cultural, História ou Geografia, os Kinikinau, mais do que os próprios Kadiwéu, demonstraram o desejo de conhecer, debater e compreender questões relacionadas à etnicidade, à identidade étnica e ao território. Assim, os Kinikinau presentes ao Curso puderam perceber que, apesar de estarem na mesma categoria relacional que os Kadiwéu, ou seja, de “índios”, não eram os mesmos indígenas que os remanescentes Mbayá-Guaikuru.
Embora tenham sido, durante muito tempo, confundidos com os Terena, os Kinikinau concebem-se diferentes destes e de quaisquer outros membros de sociedades indígenas. As armas de que dispõem para lutar pelo reconhecimento étnico e territorial serão escolhidas pelo próprio grupo e poderão envolver a manutenção do uso da língua Kinikinau e a atualização de tradições há tempos em desuso, como a Dança do Bate-Pau, também presente entre os Terena.
Das discussões oferecidas pelo Curso de Formação de Professores pode-se destacar as que versaram sobre identidade étnica e territorialidade propostas em conjunto pelos professores das disciplinas de Antropologia Cultural, Geografia e História. Os alunos Kadiwéu fazem parte de um grupo que possui o usufruto de mais de 500 mil hectares de terras demarcadas e homologadas desde a década de 1980. São conhecidos e reconhecidos pela inconfundível cerâmica produzida pelas mulheres e pelo passado de “índios cavaleiros”. Sobre eles existe ampla bibliografia de cunho histórico e antropológico e mais recentemente alguns trabalhos em áreas diversas do conhecimento. Com os alunos Kinikinau a situação é praticamente oposta: além de não possuírem terras demarcadas, não são reconhecidos pelo órgão indigenista oficial brasileiro e os poucos livros que se referem a eles os tratam como um grupo extinto. De um lado, os Kadiwéu altivos e conscientes de sua importância no cenário étnico sul-mato-grossense e brasileiro; de outro, os Kinikinau, em menor número, mas muito determinados a se fazerem ver e serem respeitados enquanto grupo étnico, o que implica, entre outras coisas, o reconhecimento por parte do Estado brasileiro.
A busca por esse reconhecimento oficial tem suma importância para os Kinikinau nos dias de hoje em sua luta na reconquista de territórios tradicionais. O caminho para se chegar a estes passa pela identificação da sociedade envolvente, uma vez que o processo de auto-identificação já se encontra em andamento.
Uma outra situação está latente entre os dois grupos que coabitam a Reserva Indígena Kadiwéu: os Kadiwéu permitem que os Kinikinau permaneçam em suas terras, no entanto rejeitam quaisquer propostas de ampliação de limites da aldeia São João. Os Kinikinau estão preocupados com o futuro, pois já não são apenas 12 pessoas (como afirma o ancião Leôncio Anastácio quando da chegada dos “pioneiros”) e a população provavelmente acompanhará o ritmo de crescimento demográfico observado em muitos outros grupos indígenas no Brasil, necessitando de mais terras para sobreviver. Entretanto, o desejo que se torna imperioso entre eles é o de terem um “lugar Kinikinau” onde possam reconstruir a memória do grupo, institucionalizando o espaço através dos ritos e dos mitos, assegurando, dessa forma, a continuidade da presença histórica Kinikinau.
Recentemente, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul, com recursos do Programa Fome Zero Indígena, organizou o Seminário Povo Kinikinawa: Persistindo a Resistência. Cerca de quarenta indígenas Kinikinau, entre crianças, jovens, adultos e idosos estiveram reunidos na Pousada Águas de Bonito entre os dias 16 e 18 de junho de 2004. Juntos, puderam debater sobre a situação atual em que vivem e elaboraram um documento, a Carta de Bonito, em que exigem, dentre outras reivindicações, reconhecimento oficial da existência da etnia por parte do Estado brasileiro. Durante os três dias de encontro receberam informações dos professores Giovani José da Silva e José Luiz de Souza a respeito das terras tradicionais dos Kinikinau e noções de Antropologia, Direito, Geografia e História.
A presença e a participação dos professores Kinikinau foi de suma importância para o encaminhamento das decisões tomadas pelo grupo. Acredita-se que a Educação Escolar poderá desempenhar um importante papel como espaço da afirmação da identidade étnica dos Kinikinau de Mato Grosso do Sul, pois, como a ave fênix, esses índios renascem das próprias cinzas, buscando provar que estão vivos e que possuem direitos históricos que até o momento lhes foram negados:
Para garantir o nosso futuro, precisamos que toda sociedade saiba que somos Kinikinau. E, como povo, queremos principalmente voltar para o nosso território de origem, para que tenhamos a garantia da sobrevivência digna, com saúde e com uma escola específica para nosso povo e dirigida por nós mesmos (Seminário Povos Resistentes, 2004).
01:: Nicolau Flores e a carteira de identidade Kinikinau de Inácio Flores.Foto: José Luiz de Souza, 2004.
Giovani José da Silva
giovanijosedasilva@ig.com.brAntropólogo e Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
José Luiz de Souza
souzajlgeo@bol.com.brSociólogo e Geógrafo, mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Maio 2005
© 2001 – Instituto SocioambientalPara reproduzir qualquer trecho deste site, é necessária a autorização expressa e por escrito do Instituto Socioambiental.É vedada a reprodução das fotos e ilustrações.